Gaza. Manhã cedo, assim bem cedinho e já tão quente como o são quentes as manhãs de verão na Faixa. Brilha o sol com a nítida e vergada placidez das águas do Mediterrâneo. Preparam-se os homens para a faina que trará o peixe que lhes sacia a fome e lhes permite uma receita modesta e variável como variável é a sorte dos dias que lhes passam pelas redes e pelas mãos. Mãos fustigadas pelo nylon, pelo sal grosso do mar que os banha.
Mounir aproxima-se da secretária de madeira suja e empoeirada que o pai lhe construiu para poder sentar-se a fazer os trabalhos da escola. Não tem janela alguma virada para onde quer que seja, porque neste momento vivem no abrigo subterrâneo obrigatório a todas as casas da zona. É um bunker. Apenas e tão só. Mas um bunker onde o pai teve a extrema preocupação de dar ao mesmo uma aparência semelhante à da casa onde vivem. A normalidade é a possível de quem vive numa zona que é fustigada, sem apelo nem agravo, pela imposição da ordem, à força, por parte de Israel e pela resistência armada e provocadora do Hamas.
A escola de Mounir foi há muito destruída pelos bombardeamentos das forças israelitas. O bairro onde cresceu está irreconhecível, desfigurado, rachado em várias frentes, formado por casas destruídas, blocos de pedra tristes e perdidos dos seus conjuntos, dos seus semelhantes, vigas de aço que se dobraram com a força das explosões e se curvaram perante o ímpeto irredutível da morte e dos seus fiéis soldados.
Agora aprendem com uma professora que dá aulas a um grupo de 15 crianças, pela manhã, na cave de um antigo barbeiro. Chegam quando o sol do deserto aparece para lhes dar os bons dias. E por ali ficam a aprender até à hora de almoço, quando a fomeca aperta nas barriguitas já vazias dos meninos e meninas. As tardes são passadas a brincar, uns com outros, ou sozinhas, com pedras, com paus, com latas velhas, com restos de balas e partes de mísseis, com bolas feitas com o que lhes aparece aos pés. Ouve-se rádio nas esquinas e o ar é pesado, espesso, de entrada difícil no peito de quem não nasceu ali.
No início deste ano eram 24, mas entretanto já 9 morreram em explosões provocadas por ataques israelitas ou por “brincadeiras” de soldados bem dispostos pela manhã.
Mas estamos em tempo de férias e vêem-se menos do que o normal.
Mounir passa os dias maioritariamente com M. Fallah, amigo das fraldas e das correrias em pelota pelas ruas do bairro onde nasceram, perto do mar, sempre, os dois são exímios nadadores e mergulhadores aos 9 anos de idade. Ajudam na pesca sempre que são chamados.
Têm passado grande parte do tempo em que estão juntos a discutir o que vão dizer e escrever no trabalho de casa que a professora lhes passou nas férias. Ora, a tarefa consiste em escreverem uma carta, em que contem como se vive em Gaza, um dos sítios mais “difíceis” do mundo, e depois, para além de terem de escolher um país de destino para a carta, tinham ainda de dizer a quem é que queriam entregar a carta, a um menino, a uma menina, ou a um adulto, homem ou mulher. A professora tem amigos espalhados pelo mundo e muitos deles são também professores, pelo que será ela a enviar as cartas.
O país foi escolhido por eles num velho planisfério cansado de tanta guerra e de tanta explosão, agastado e já meio rasgado pelas marcas pouco simpáticas que o tempo, o calor, o pó e a morte deixam no papel, que outra solução não tem que não cobrir-se de castanho queimado. O papel é velho, rasga-se com incomparável facilidade. A professora conseguira resgatá-lo numa das salas da escola onde ensinava e da qual pouca mais restava a não ser alguns pedaços tímidos do primeiro andar e uma parte de cada uma das salas do 4º ano.
Mounir já tinha começado a escrever umas linhas e escolhera, curiosamente, o país do seu jogador de futebol preferido, Cristiano Ronaldo. Tem, nas costas da cadeira onde se senta em frente à secretária de madeira suja e empoeirada que o pai lhe construiu, uma camisola rota onde pintou o número 7 e um nome: RoNaLdU.
Continua (…)