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Os dias que se seguiram ao envio da primeira carta de Mounir foram aterradores para quem vive na faixa de Gaza e efectivamente não tem mais sítio para onde ir. Tudo o que se assoma por diante dos olhos dos ridiculamente pequenos territórios da Palestina é Israel e a sudoeste é Egipto (País de origem de Arafat). Importa não permitir que nos esqueçamos que estamos a falar de um Estado (dividido em 2 partes fisicamente afastadas) juridicamente equivalente ao Vaticano, assim reconhecido pela esmagadora maioria dos países membros da ONU em 2012, Portugal inclusive.
As informações que chegam de quem está no terreno apontam para mais de 1500 mortes do “lado palestiniano”, das quais me atrevo a afirmar que 80 ou 90 por cento são, por certo, civis, gente que nada tem a ver com todo este jogo de “mija mais longe” indesmentivelmente desmedido entre Israel e… o Hamas.
E aqui há algo que me parece evidente e que devia ser o ponto de partida para a grande maioria das análises que se fazem no sofá, na cadeira da esplanada, na mesa do escritório, ou seja lá onde for; uma coisa é o Hamas e os seus braços e pernas armados, repletos de extremistas (muitos deles de outros países árabes que também não reconhecem o Estado de Israel) que se alimentam de lançamentos de rockets, que os escondem em escolas, em mesquitas, em hospitais, em pátios de casas de famílias, que fazem escudo do próprio povo e que, também eles, matam de forma indiscriminada, civis que nada têm que ver com o exército israelita; outra coisa completamente diferente é o povo palestiniano, subjugado à força deste extremismo terrorista (em metade do território palestiniano, ou mais…).
Meus senhores, não serão nem mais nem menos, nem tão pouco melhores ou piores do que ninguém por reconhecerem este mesmo facto, por reconhecerem que a (des)proporção com que as mortes se vão somando de um lado e de outro da mesa é totalmente assimétrica e desigual e, passe a redundância desavergonhadamente assumida, desproporcional, porque o é.
É também fantástico ver como se pode fazer da guerra, de um sem fim de mortes em catadupa, uma coisa pura e ordinariamente matemática. Uma coisa simples e sobretudo simplificada pela distância a que as televisões, os jornais e todo o tipo de ecrãs onde hoje vemos as notícias nos remetem.
De resto, talvez seja mesmo essa a única forma de não nos importarmos sequer com toda a merda que acontece naquela terra.
Na verdade, os números são o medidor oficial e por excelência simpática da gravidade das guerras recentes. Pelo menos para quem está longe das mesmas e apenas sabe delas através de imagens mostradas na televisão, servidas à pressão com um texto tantas vezes escrito quase a correr, num esforço para pelo menos destacar numa narração séria e fidedigna os números que são “avançados” por quem lá está, por quem consegue estóica e condecoravelmente realizar a tarefa de apurar e conferir informação num cenário de rebentamentos, explosões, trocas de tiros, corpos mutilados, esmagados, despedaçados, aos caídos no que resta das ruas que aos poucos vão perdendo a forma e deixando de o ser para serem agora empilhados de entulho. E chora-se. E grita-se, um pouco por toda a parte. E depois há ainda o gemido surdo da terra que chora em vão… um choro pachorrento sai das pedras e dos montes que estas formam, que ainda bem há pouco eram casas adultas e viçosas, e sobretudo de pé como devem estar os homens e as casas. Agora velam-se umas às outras e choram desconsoladas por mais não serem do que tão somente montes de pedras encarquilhadas e funestas.
Esses homens e mulheres que o fazem, que lá andam à procura de informação, não sabem, mas com os dados que nos fazem chegar são os principais causadores de discussões, de controvérsias, de trocas de opiniões, de debates acesos, de incompreensões e consensos naqueles que ainda se dão ao trabalho de falar sobre isto, de pensar em tudo isto, de sentir que este mundo está a atravessar dias cada vez mais escuros, de pensar que de facto a maldade e a ganância do homem são grandezas quase absolutas que não conhecem limites.
Quem lá anda tenta dar expressão a tudo o que vai sentindo, sabendo, conhecendo, presenciando, ouvindo e observando… para contar aos que cá ficam e esperam, sem grande ponta de preocupação ou de interesse mas com vastíssima curiosidade opinativa. Porque é essa a missão. É esse o dever. É matemática. É vontade. É uma luta pessoal. Uma escolha. Com riscos. Mas é sempre uma escolha e eles… escolhem.
Ora isto são 1500 + 70 + 135 + civis + fogo cruzado! é preciso cuidado! diz o senhor presidente daquele país que manda o exército invadir e semear a morte por (quase) tudo o quanto é lado… Ah pois que ele(s) sabe(m) bem onde é que não pode(m) meter o bedelho. É tudo matemática. Até quando partes um espelho.
Crianças. São as mortes das crianças as que me corroem as vísceras, que me rasgam o pensamento. As crianças são a esperança que resta a este planeta doente de que de facto tudo pode ainda vir a ser diferente. As que não morrem, crescem com a morte bordada na pele, na roupa que veste, na comida que comem, nos livros que lêem, nos jogos que fazem.
É impossível não se crescer com desejo de vingança quando nos dizimam a família, os amigos, os vizinhos. Quando nos rebentam com as escolas, com os hospitais, com as mercearias e tudo o mais.
E se fossem vocês? Se esta fosse a vossa vida, como seria?
Já deram a vós mesmos 1 minuto que seja para pensar nisso? Somos animais e somos instintivos e protectores dos nossos, como são todos os animais deste planeta agraciado com a existência de vida… animal.
Pensem por um momento que era aí, na vossa rua, no vosso bairro, na vossa aldeia, na vossa vila, na vossa cidade.
Pensem. Quanto mais não seja para… não ser como é sempre, para não acharem que não têm nada a ver com isso, que é na Palestina, que é em Israel e… azar o deles, que se amanhem e se resolvam e sobretudo, que não sobre nada cá para o meu lado.
Por uma vez (perdoem-me aqueles que já o fazem) tentem de facto fechar os olhos, olhem que não vos toma muito tempo, uns minutos bastam para tentarem imaginar a vossa realidade, o vosso quotidiano, o vosso mundo a ser devastado diária e ciclicamente desta forma atroz e inexplicável. Até que um dia… Pum! Matam-vos a mulher, a mãe, o pai, a amiga, a filha, o filho, a neta, o neto, sei lá mais quem! A vocês. Aos vossos amigos. Aos vizinhos. Não é na televisão é mesmo ali, aí, no prédio, na rua, no bairro, na vila, na cidade.

Até o cheiro é familiar, é o sangue do nosso sangue, são as lágrimas dos que amamos, são as roupas que lhes conhecemos que agora se despojam no chão empoeirado, rasgadas, esventradas e empapadas do sangue do nosso sangue. E agora? E agora?! Olhem nos olhos de quem amam e pensem… e se fosses tu? E se amanhã nos bombardeassem a rua, o que fazíamos? Temos medo de morrer e pouco ou nada disto nos atormenta, como será viver assim? Adormecer abraçado à morte e não saber se amanhã se dorme ou sequer se se volta a acordar.
E a chuva lá fora vai chovendo como é, de resto, seu dever. Devagar, devagarinho, lânguida e funerária, como o sangue que escorre pelas ruas de Gaza, de Rafa, por vezes de Tel Aviv e de Ramallah.
Sangue por toda a parte. E o cheiro que dele emana ao fim de uns dias a coalhar pelas esquinas desfeitas, pelos cantos desencantados, pelos diferentes e variados amontoados de escombros, esse cheiro que se entranha na pele, que viaja à boleia no pó que do chão se ergue caprichosamente para nos cobrir da cabeça aos pés, para se barricar no interior das narinas durante dias e dias a fio. O cheiro a podre e a morte. E nos olhos? Nos olhos corre desenfreado um rio mortiço e conformado que carrega nas costas todos os seus afluentes e faz desaguar neles uma tempestade de lágrimas impossível de suster. São feridas que não podem ser estancadas com a velocidade que o mundo pede. São olhos de dor. De raiva. De medo. De alegria. De vida. De crença. De quem só quer sair dali e voltar a casa, poder voltar a ser homem, a usar os olhos para olhar bem dentro, lá no fundo dos olhos da mulher, lá onde ela arruma a alma diariamente; quer olhar os filhos e abraçá-los, dizer-lhes que os ama enquanto os volta a olhar ainda de sacola no ombro, acabado de chegar de mais um dia de trabalho. Tem a guerra múltiplos capítulos, sem ordem, mas com vidas dentro… e com vidas que mete fora… ou dentro… depende sempre da perspectiva.
“Olá outra vez.
Como não respondeste resolvi escrever-te novamente até porque não me resta praticamente mais ninguém com quem falar.
Passaram-se muitas coisas feias desde o dia em que entreguei a carta anterior à minha professora até… agora, aqui, sentado em cima daquilo que costumava ser a casa do M. Fallah e da sua família. A escrever com um lápis numas folhas que tinha dobradas no bolso. Disse que esta costumava ser a casa do M. Fallah porque ela está completamente destruída. Há 2 dias, num dos bombardeamentos que Israel fez naquela noite, a casa do Fallah, que é, era mesmo em frente à minha, foi atingida por uma bomba enorme, maior do que eu, e olha que não sou nenhum pequenote. Era tão grande e tão exageradamente forte que não só rebentou com a casa dele como destruiu mais 3 que estavam ao lado e atrás. Morreram todos. Morreu o Fallah, os irmãos, os pais e a avó que vivia com eles. Acordou o bairro inteiro com a violência da explosão. Eles não dormiam no bunker. O pai dele recusava-se. Dizia que homem nenhum pode ter medo de dormir na sua cama, no seu quarto, ao lado da sua mulher. E olha o que lhe aconteceu.
O Fallah nunca fez mal a nenhum israelita. Nunca falou mal sequer mal deles. Era o tipo mais calmo que eu conhecia. Só queria brincar. Não se zangava. Não se irritava. Não se chateava. SÓ QUERIA BRINCAR E SER FELIZ!! Porque é que o mataram? Porquê? Porque é que Alá, Deus, Maomé, ou seja lá quem for permitem que isto aconteça, aqui? Todos os dias morre alguém. Tenho as mãos cobertas de sangue que não é meu. Sangue seco e grosso e escuro.
Perdi todos os meus amigos. Perdi a minha escola. Perdi o campo de futebol. Tenho a camisola do Ronaldu vestida há uma semana. Não tenho mais roupa.

O meu melhor amigo. Juntos aprendemos a andar, a comer, a falar, a jogar à bola, a andar de bicicleta, a pescar, a nadar, tudo. Não é justo. NÃO É JUSTO!!! E eu a dormir no bunker.
Recordo poucas coisas desse dia. Lembro-me sobretudo que era bem cedo quando comecei a ouvir o choro dos meus pais.
Levantei-me para ir ver o que se passava e fiquei parado à porta de casa. À minha frente só havia um gigantesco monte de entulho, de pedras, chapas, paus, ferros, roupas, sapatos, pneus e junto à janela pequena, azul e mal pintada, que ficava do lado direito da porta da rua, e que era a janela do quarto dos rapazes, nesse sítio, estava o Fallah, com metade do corpo tapado por umas pedras e com as pernas limpinhas de fora, sem um arranhão.
Puxei-o, gritei, chamei-o, mas ele não se mexia.
Depois os meus pais puxaram-me para casa e não me lembro de muito mais. Há dois dias que só ouço gritos e tiros e explosões e choro e depois dos tiros o silêncio e chora a rua e cheira mal em todo o lado.
Cheira a morte em todo o lado. As ruas já não são ruas, são caminhos estranhos e perigosos.
Foi muito triste. É muito triste. É horrível!! Não quero viver assim. Não quero estar aqui. Não tenho amigos.
Vou andando até casa da professora para ainda voltar antes de ficar escuro. Não sei como vou lá chegar nem sequer sei se ela lá está. Ficámos sem telefone por isso não consigo telefonar para casa da professora, tenho de ir a pé…
Vou ver se a minha mãe me deixa lá ir…
Grrr… não me quer deixar sair. Mas eu vou na mesma. Vou pela janela, não custa nada. Depois conto-te como é que faço isto… Vou ali chamar o… Não posso. Ele morreu…
Vou entregar a carta à professora.
Adeus e espero que desta vez respondas.
Peço-te que digas qualquer coisa por favor… peço-te que não sejas igual à grande parte do mundo que não quer saber de nós. Que tem muita pena mas… não faz nada. Tu podes fazer alguma coisa.
Não tenho mais ninguém com quem falar. E tu? Também és igual aos outros?
Um abraço,
M.”
Continua (…)