Escrever consome energia de uma forma absolutamente incomparável. E é incomparável quer na forma quer na génese e natureza da mesma energia, consumida de forma voraz por cada poro da pele de quem cria seja lá o que for com recurso aos segredo ínfimos da literatura! Há como que uma espécie pouco usual de crepitar sonolento da ponta dos dedos, que, debaixo de uma insaciável urgência, se debatem com a impotente incerteza do rumo que podem vulgarmente permitir-se seguir.
A cabeça de quem escreve tem três trabalhos: pensar e decifrar o que lhe percorre o pensamento; pensar novamente e encadear a balbúrdia do mesmo dando-lhe, ou tentando dar-lhe algum sentido, tantas vezes sem saber bem como ou porquê; por fim, e pasme-se, num terceiro momento, escreve exactamente o que o pensamento ordena aos dedos que tacitamente registem tudo o quanto lhes enfia pela goela abaixo. Por isso quem escreve é forçado a deparar-se uma e outra e ainda mais outra vez com os pensamentos a que não pode dar liberdade e “ordem de soltura”.
Os braços robustos da criação apoderam-se das ideias que deixam de ser ideias e passam a ser conceitos, verdades, demências, numa espécie de confirmação, mais do que justificada, do pensar e do ser, isto sem terem sequer de estar em parte alguma que não na cabeça desregrada e iluminada de quem tenta.
Se, na incapacidade de encontrar porto onde atracar a barcaça de palavras que me atravessam com fulgor o pensamento descontrolado, me permitisse a Divindade encontrar um abrigo assim bem abrigado onde pudesse descansar as ideias, e se não fora pedir em demasia, que esse descanso mais não fosse do que um intervalo soluçado, no meio do respirar ofegante de quem corre e não se senta, de quem desiste e nunca tenta verdadeiramente, nunca prova o tentar próprio de quem tenta querer ser coisa alguma ou alguma coisa que seja… agradeceria como quem simpaticamente pestaneja dizendo que sim em silêncio! Não resta muito mais ao homem que a sua educação.
Falta-me a força que me a tira a dor física de não saber.
Porquanto escrevo e vou encontrando nisto uma forma certa de encontrar, por isso decido-me a continuar.
Nas palavras busco o sentido do sentido que aprendo a dar às coisas estranhas e rebuscadas do viver.
Enervo-me e perco-me pelos caminhos a que não dou palavra alguma. Há que as guardar para contar as coisas dos outros mundos, e mesmo esses são suspeitos.
Os mundos criados nascem já eles deformados pelas realidades que se absorvem indubitavelmente pela fome dos olhos, porque para viver preciso sempre de olhar em redor e ser o próprio redor dos outros que olham para o seu redor em que inadvertidamente me insiro!
Tem-me confidenciado a vida que as esperas permitem que conheças o domínio, tantas vezes ensombrado, da paciência, da capacidade invulgar de saber aguardar pelo que te reserva o tempo futuro que tantas vezes temes.
Temendo e destapando os dias que trago nos pés, sou apanhado na ardilosa e enredada incompreensão dos fragmentos do tempo, que se congregam religiosamente numa aparição inevitável e inebriante que fragiliza o mais resistente dos guerreiros.
Sangue na cara, dedos rasgados, olhos meio inchados, a boca remetida ao emudecimento forçado pelos hematomas que a amordaçam! Raiva! Muita! Resta-me pouco que não tu e a bendita literatura! Resta-me menos que não a desventura tresloucada de anotar, de dizer sem pouco mais mexer que os dedos e os ombros em solilóquios arrogantes! Que bela merda. Por isso dizem que escrever é fácil, que não dá trabalho algum, essas coisas que escreves são o quê? Ah, tssss! Ganha juízo mas é!
A insensatez e a falta de vergonha são hoje epidemias coléricas que se disseminam a um ritmo mais vertiginoso que a capacidade reprodutora dos pombos emporcalhados que nos sobrevoam desafiadoramente em voos rasantes e empertigados!
Se houver essa possibilidade quero ser dito como um “homem que está atrás do seu tempo”.
O meu tempo não é este dos corvos disfarçados de saias, calças, casacos e sobretudos.
De maldade e avareza se maquilham estas pérfidas almas que, a pouco e pouco, se distendem em movimentos tão repentinos que não lhes chegam as beliscadelas rapidas e tenazes das palavras que escrevo dentro da minha fúria de menino mimado, isto claro, tudo desenrolado à estrondosa velocidade que as mãos, ainda frescas da idade, me permitem escrever, letra atrás de letra, sem esquecer o intervalo a que se destinam os assentos e os marcos de pontuação!
Folheando o mestre Lobo Antunes tento compreender porque lhe dói tanto a literatura que lhe corre nas veias e vai que vai debruço-me sobre isso mesmo, sobre as veias que transportam as ideias em desengonçadas centopeias desprovidas de uma outra ilustração que não aquela que o meu sangue lhes dá! Quando trabalhas tens menos tempo para alinhar, para equilibrar o que te assalta e te pede que lhe dês vida, o que te espanta e te abraça de seguida!
Quando não pensas, não és tudo o que sabes ser!
Quando não pensas, ficas mais perto da inquietação dos que têm medo de o fazer.
Quando não escrevo sou eu na mesma. Não sei em que língua me falo ou me dirijo a mim mesmo, sei que escrevo e para isso, não preciso de pedir licença.
– Por favor, importa-se que passe à sua frente? Tenho coisas imensas para escrever e isto não pode esperar.
– Ora essa menino, por quem é, faça a fineza de passar.