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Estes “sacanas” destes refugiados II – Medo, ignorância e o terror daquela infância

O meu último texto superou todas as expectativas que tive quando o publiquei aqui. Estava longe de imaginar que o mesmo iria gerar mais visualizações num só dia do que o blog alguma vez tivera nos 6 anos da sua dedicada e insistente existência. É certo que o tema era e é quente, recente, contundente, e que não deixa (quase) ninguém indiferente, mas daí a ser partilhado e comentado por tanta gente… isso, isso é coisa bem diferente. Mas vamos por partes. O Rogério Esteves e a Cândida Pinto (dois nomes que devem ser referidos com orgulho, reverência e solenidade) já regressaram a Portugal. E a coisa não lhes correu nada mal. Estiveram lá durante mais de duas semanas a queimar os olhos e as pestanas, a ver coisas desumanas, espantados com as atrocidades cometidas, com as palavras proferidas, com as horas perdidas, com as crianças desnutridas, com a quantidade inquantificável de gente de vistas perdidas, de olhares vazios, de lágrimas no rosto, aninhados, amedrontados e com fome e frio. (Mas estes “sacanas” merecem. Ou pensavam que era só vir aqui invadir a Europa e encontrar um mar de facilidades?)
O Rogério e a Cândida sofreram! Sim. Sofreram. Como sofre qualquer ser humano de boa índole ao ver outro ser humano em sofrimento. Talvez mais ele do que ela. A Cândida Pinto (cujo nome, como já disse e não me canso ou nada importo de repetir, se deve ler com reverência – obrigado novamente António Reis que tanto sabes) já esteve várias vezes em cenários de guerra, reais, por demais, com fogo que não é amigo, bem pelo contrário, olhando bem de perto para a cara feia do perigo, esquecendo-se sempre do seu próprio umbigo.

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Foto: Rogério Esteves

Ele não. Ele foi “lá parar” porque ela quis que ele fosse, pediu que ele fosse, porque gosta do trabalho dele, porque acredita que ele tem nos olhos e na relação íntima com a câmera e com as imagens, qualidades inequívocas e inquestionáveis no que a este tipo de trabalho diz respeito. Mas, o que também importa aqui dizer é que o R. tem 25 anos, vinte e cinco anos apenas, banhados pela luz radiante e tremendamente contagiosa de um coração enorme, de uma bondade que conhece poucos ou até mesmo nenhuns limites, purificada por uma sinceridade transcendente ao próprio corpo e que se propaga pela imensidão dos seus olhos azuis e da alma que lhe carrega tantas vezes o corpo e o senta no diafragma da lente com que nos mostra… “o país e o mundo”.
Foca e desfoca, ri, chora e não treme, como não tremeu nestes dias em que esteve com a Cândida (repito: este nome deve dizer-se com reverência) e que viu as coisas mais verdadeiramente impressionantes da sua ainda curta vida. Escrevei anteriormente que o que mais o impressionou e que foi mais difícil de aceitar foi o ter de ouvir, olhar, ver e escutar os lamentos desesperados das crianças e dos seus olhos carregados de verdade e de tristeza, de medo, fustigadas por terror a mais para anos de vida a menos.

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Foto: Rogério Esteves

Verdade. Digo, disse-o e repito-o. Sem apelo nem agravo, sem dó nem piedade, porque por cá, quem continua (depois de tantos e tantos dias, depois de tantas e tantas imagens, depois de tantos e tantos relatos) a revelar-se intransigente, inflexível, racista, xenófobo e estúpido, a mostrar ser implacável na verborreia com que apregoa o medo que os “sacanas” dos sírios lhe(s) causa(m), com argumentos translúcidos e inspirados tais como: que querem “colonizar” o mundo com um imperialismo disfarçado e hostil, querem oprimir todos os seres humanos que encontrarem pela frente e os seus animais também (que pode sempre dar jeito), quem continua a defender esse tipo de ignomínia absurda, não merece mais do que verdade. Factos. Que a realidade lhes lave os olhos fechados… com tanta gente que queria ver!

Ah e querem igualmente usurpar-nos os empregos… falo daqueles que tiverem paciência e vontade de trabalhar, obviamente, porque como é “certo e sabido”, todos eles querem vir para a Europa para serem parasitas, sanguessugas, escorpiões, cobras venenosas e malvadas, munidas de uma peçonha sem antídoto, dum venenoso e pérfido poder que nos vai dizimar a todos… logo a Nós, os europeus puros de sangue! Os do “velho continente”.
E este pensar, não está ele corrompido por ideias despóticas e imperiais, que serviram de base idealista para as piores atrocidades que se comentaram neste continente e que culminaram com a tentativa de extermínio de um povo (os judeus), que também tinha vindo aqui para procurar refúgio?

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Foto: Rogério Esteves
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Foto: Rogério Esteves

Pergunto-vos, porque gosto muito de conversar: Alguém acredita, no seu perfeito juízo, ou consegue acreditar, que existam seres humanos que gostem de ser REFUGIADOS de Guerra? Que se vangloriem de viver assim? Que se sintam felizes por não poderem viver na terra onde nasceram, onde cresceram, onde aprenderam a ser gente? Onde aprenderam o significado de ser e estar.

Ser. Mas ser mesmo. Existir. Tal grandeza só tem sentido se o coração bater, se o sangue correr, se o olhos brilharem mesmo que não vejam, se o nariz cheirar mesmo que o cheiro seja hediondo e o ar conspurcado.
Perde-se tempo, tanto tempo, demasiado tempo a tentar encontrar motivações que consigam explicar todo este fluxo migratório e, digo-vos eu, pela ponta dos meus dedos, que é tempo perdido. Porquê? Porque a verdadeira motivação desta migração massiva está, simplesmente, na luta desigual e constante pela sobrevivência. Numa vontade inabalável de viver, de sorrir, de crescer, de ser mais, de ter mais, mais do que tudo isso, de recomeçar. Quem cá chega abandonou tudo. Quem cá chega trabalhou durante meses ou até anos a fio para juntar tudo o que era possível juntar e que, não poucas vezes, acaba no fundo do Mediterrâneo. E há depois a superior e inesgotável vontade de não ter medo.

Os meus colegas viram coisas que nós, aqui, no sofá, no escritório, pela televisão, pela internet, no tablet, no telefone, não vemos! E capacitem-se de que nunca, mas nunca vamos ver… da mesma forma que eles viram! São coisas a que nunca vamos conseguir chegar, imagens que, por muitas e mais vezes que nos sejam contadas, serão sempre isso, relatos, histórias, imagens vistas pelos olhos de alguém, que, vão sendo cada vez mais difíceis de enquadrar. Mas para isso há uma explicação cabal e inequívoca. Há um nome sem rosto mas que é maior que os Deuses, que os sonhos, que o Sol. O Medo! Esse sim o verdadeiro monstro, aquele que nos impede de abrir os olhos, que nos obriga a ficar debaixo dos lençóis sedosos e apetitosos da facilidade e do conforto, tapados, submersos, impressionante imobilizados e de sangue congelado nas veias, à espera que o pesadelo passe e que seja novamente manhã, que brilhe o sol, que corram felizes as nuvens e que tudo isto não passe… de um sonho mau.
E viram coisas estranhas, coisas esquisitas, nas suas próprias palavras.
Campos de acolhimento que se esvaziaram mais depressa do que uma curta noite de sono. Centenas de pessoas a serem metidas em autocarros e levadas para parte incerta. Estratégias de combate militar da polícia húngara. E sons. Muitos sons. Sons que ficam. Sons que teimam em não os largar. A ele em particular. De pânico. De terror. De fuga. Que chegam em forma de gritos. De homens, de mulheres e de crianças. Como é horrível o som do terror da pequena infância.
O R. não se esquece do “barulho impressionante” de 5 mil pessoas a correr em todas as direcções, do tumulto, da polícia, do polícia que lhe enfiou um braço por baixo da câmara e lhe lançou uma bombada de gás pimenta para os olhos e para a boca – “nunca tinha ouvido um barulho assim meu amigo”. Não se esquece do homem sírio que, vendo-o aflito, parou a sua corrida e lhe deu um pacote de lenços de papel e lhe disse para limpar a boca e os olhos com o papel, “ajuda a tirar o gás” disse ele.

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Foto: Rogério Esteves

E todas estas são palavras em que acredito piamente. Os olhos do R. não mentem, muito menos a sua boca, onde o espaço é, regra geral, reservado a sorrisos largos e gargalhadas estridentes. A Cândida Pinto (volto a frisar que este nome deve ler-se com reverência e respeito extremo) é uma jornalista “sénior” como dizemos na redacção da SIC. Tem muitos anos “disto”. Com ela nunca troquei mais do que o cordial e educado bom dia, boa tarde ou boa noite. Não porque não quisesse falar mais, mas porque há colegas nesta casa que me merecem tal respeito pelo trajecto profissional que têm, que o embargo na voz me foi sempre emudecendo, e me impediu de ser capaz de a abordar com qualquer pergunta sobre tudo o que fez enquanto jornalista profissional.
Levei igualmente muito tempo para conseguir dirigir-me ao Rodrigo Guedes de Carvalho e à Clara de Sousa, à Ana Lourenço ou mesmo ao Mário Crespo que conheci ainda era eu um petiz de colo. Foi preciso outro tanto para não tratar com solenidade episcopal o José Manuel Mestre… e a Cândida Pinto (isso mesmo, reverência e respeito, já perceberam a lógica) faz parte desse mesmo lote. Mas para que não se pense que os húngaros agem de ânimo leve, importa recordar que este é um país traumatizado, que viveu 45 anos sob ocupação russa (com tudo o que isso implica). Não nos esqueçamos que o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do império austrohúngaro, em Sarajevo, precipita o começo da Primeira Grande Guerra, com a invasão da Sérvia (outro dos países por onde passaram, a pé, todos estes recentes refugiados. A história a encarregar-se de nos surpreender com a sua fina ironia).

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Foto: Rogério Esteves

Não nos esqueçamos que o povo húngaro também tem um elevado historial de procura de refúgio e de asilo noutros países, de fuga em massa para escapar das garras poderosas da fome, do frio e do terror imposto pela URSS.
Dissolvido em 1918, o império austro-húngaro deu então origem à República democrática da Hungria (Lá está outra vez a fuga deliberada para a graçola, Martim).

Depois veio a ocupação russa e isso, isso, por si só, é coisinha para marcar toda a história e vida de uma nação.
Basta que olhemos para todos os países que fizeram parte da URSS e vejamos o que lhes sucedeu.
Estónia, Letónia, Lituânia, Bielorrússia, Moldávia, Ucrânia, Arménia, Azerbaijão, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Uzbequistão. Tudo sítios onde é certo e sabido que a vida decorre debaixo da maior das liberdades, onde se é um ser livre para se ser, se pensar, se estar e se viver da forma que mais nos aprouver… isto enquanto não se chateia ninguém e não se “preenche” os requisitos mínimos para levar um baláziozinho nos miolos, se aquilo que quisermos e acharmos giro chatear quem não deve. Tirando isso. Tudo impecável.

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Veja-se então como vivem e pensam hoje a maioria dos habitantes destas nações independentes…

Apenas para que se olhe para a Hungria com olhos de ver, com olhos de realidade a quem os críticos, e todos aqueles que querem mandar pastar “esta gente” tanto apregoam, como sendo aquilo que nós, os que defendemos a vida “desta gente“, não somos capazes de ver; para que todos percebam a atitude que mantiveram e mantêm, os ataques aos refugiados e a Xenofobia (medo excessivo, descontrolado e desmedido em relação a pessoas estranhas, com as quais nós habitualmente não contactamos. Esta doença (sim, DOENÇA) insere-se no grupo das perturbações fóbicas…) evidente e despudorada, é preciso que se perceba que da boca do Primeiro-Ministro húngaro (que para nós é um “bolito” miniatura de pastelaria) é um senhor desses com laivos vários de ditador, hegemónico, disposto a tudo, que recentemente gastou cerca de 20 Milhões de Dólares para construir um estádio de futebol com capacidade para 4 mil lugares sentados, junto à sua casa de campo, para poder ver jogos com os amigos… parece-me tudo bem… esse mesmo senhor deixou sair pela cloaca as seguintes palavras: “É preciso manter a Europa cristã” e, meses antes, em Paris, naquela altura em que fomos todos Charlie, referiu também a necessidade de “travar o fluxo migratório não-cristão que se regista na Europa”. Robin-Hood do Cristianismo. Portanto, temos na Hungria um patriota acérrimo, que dá elevados sinais de corrupção activa e abuso de poder, e que já mandou erguer cartazes com mensagens no mínimo ameaçadoras para quem entra no país, e que se vê a ele mesmo como o salvador do Cristianismo Europeu. Tudo normal. Excepto uma coisa muito importante.
Deus não nos ensina a distinguir entre as cores da pele, meu caro Viktor! Os formatos das mãos, os decotes nas camisolas, ou aquilo com que escondemos o corpo não são, na palavra do Senhor, seja lá em que língua for, coisas retratadas e a ter em conta por todos os que O seguem. Isso é tão estúpido como dizer que quem se explode no meio de uma multidão e mata o maior número possível de pessoas tem 70 virgens à sua espera, num apregoado e idílico paraíso onde se pode beber boa pinga e enfardar fruta todo o dia, para além de passar a vida envolto na luxúria orgulhosa com tantas mulheres quantas aquelas que quiser ter. Deus ensina a amar caramba. Eu aprendi isto, com freiras, com padres, com catequistas, com bispos, com a Bíblia, com a minha família, com a minha mãe, com a minha avó e com os meus tios. Aprendi, isso sim, que Deus é Amor, ponto. No fundo é disso que se trata aqui, de A.M.O.R, como diz e bem o Pedro Abrunhosa.

Foto: Rogério Esteves
Foto: Rogério Esteves

Quanto ao Rogério e à Cândida, foram quase 20 dias, cerca de 5 mil quilómetros, 5 fronteiras na Europa Central, 2 fronteiras “protegidas” com muros de arame farpado, cargas policiais com direito a gás lacrimogéneo e pimenta nas fuças, canhões de água no corpinho (não fossem eles precisar de um banhito), com ordens dadas aos militares húngaros para que atirassem/disparassem de forma não letal sobre os migrantes… houve de tudo.
Mas houve a felicidade de familiares, colegas e amigos em saberem que, para eles, chegou por fim a hora de voltar a casa. De voltar ao… seu refúgio. Áquele que cada um de nós tem a sorte de ter.
Bye, bye Budapest, disseram na hora da partida, e bye, bye fronteiras armadas, muros erguidos para proteger os países de invasões por parte destes bárbaros de pele mais “tostada” pelo sol e de olhos enegrecidos pelo terror.
(leiam o artigo do NYTimes sobre o Primeiro-ministro húngaro que partilho no fim deste texto)
Hoje, a única coisa que quero é que levem as mãos às vossas consciências.
Os que concordam e os que discordam de tudo o que disse e repeti. Os que têm opinião e os que não têm. Os que se preocupam e os que se estão nas tintas para tudo isto e para os outros. Para as pessoas. Se vivem ou se morrem.
E a vocês, racistas, xenófobos, ignorantes, acéfalos, pequenos pedaços de vida sem sentido, até a vós eu vos pergunto meninos proto-arianos, digam-me o que fariam se tivessem nascido ali e não aqui. Porque corpo, corpo todos temos, lá por dentro é que tudo muda. Mas digam-me, preferiam morrer, a fugir, não era? Seus valentões! Claro que sim.
E preferiam ver toda a vossa família morrer, a fugir, não era? Claro que sim. Nem fuga nem rendição. Que quem se rende são os pretos, os monhés, os judeus, os chineses, os índios e essa “escumalha toda”. Mais nada!

Agora olhem para os vossos filhos já deitados na cama, para a vossa mulher a terminar de lhes arrumar a comida nas mochilas, para as fotografias dos vossos pais, amigos e familiares espalhadas pela sala, pelo corredor, pelo hall, pelo quarto e pensem… e se amanhã perdessem tudo isto e só vos restasse… fugir, de barco, de carro, a pé, de comboio, para salvar a minha família. O que faziam? O que faziam se as fronteiras da vossa fuga vos fossem fechadas na cara? Se toda a esperança vos fosse deliberadamente trancada a cadeado. Que tudo isto sirva, ao menos, para percebermos que é urgente voltar a pensar pela nossa própria cabeça. É urgente regressarmos à educação que tivemos, aos princípios básicos da vida humana em sociedade. A morte, o abandono, o nojo, o medo, a repulsa… não fazem parte desse lote de leis com que se deve pautar uma vida. Nem podem fazer. Nem ontem, nem hoje nem nunca. Seja qual for a cor da tua pele, o som da tua língua, a origem do teu povo, a bandeira do teu país, o teu hino, o teu pequeno-almoço, ou a roupa que vestes nos dias em que festejas seja lá o que for. Somos todos homens. Já fomos todos Charlies. E o que não vão chamar os nossos netos? A estes dois jornalistas eu agradeço porque graças a eles, hoje sei mais, sou maior, sou melhor. E devemos agradecer todos porque, mesmo estando ali para fazer o seu trabalho, para o qual são pagos no final de cada mês, são capazes de nos contar as histórias, sejam elas melhores ou piores, tenham elas um final mais ou menos feliz. Ser jornalista é isto mesmo, contar a história que não foi contada, mostrar as imagens que ainda não foram vistas. Obrigado Rogério e Cândida. (Estes dois nomes devem ler-se com respeito e reverência, apenas ao alcance dos que o merecem pela distinção nobre do trabalho que fazem e da vida que vivem)

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Foto: Cândida Pinto

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