Passa pouco ou quase nada das 2 horas da madrugada.
Percorri quase a galope os 1600 metros que separam o sítio onde estava de casa, para onde vim, a casa do trabalho, do emprego, da ocupação, da distração, da produção.
Cheguei ligeiramente ofegante de sorriso gélido nos lábios, despindo de forma ainda enérgica o agasalho que me acompanha no calor invernal das noites frescas de Dezembro. Sim, com maiúscula, Dezembro, o mês da viragem, o mês da imagem, o mês da partilha e da aproximação, da redenção das almas putrefactas, que se preparam para uma espécie de abstinência frívola no que à maldade diz respeito.
Chego a casa, desencasaco-me, descalço-me, sento-me e logo começo a sentir o peso da vontade, o fervor da necessidade, a latência do desejo inegável e irreprimível:
PRECISO DE ESCREVER – Digo para mim mesmo enquanto lá dentro, a Ana descansa sossegada.
Preciso de escrever.
Regra geral escreve-se com um objectivo, com um fundamento, com um propósito perfeitamente identificado e delineado, com um aglomerar de ideias registadas que não se podem perder, de construções frásicas, de ilusionismos métrico-semânticos, de… sei lá mais o quê. (Mando o Word à merda. Passa a vida a dizer-me: Essa é uma construção própria da oralidade, sugerimos que pondere a utilização de uma expressão alternativa. Não! Escrevo como falo, como e porque quero e como e porque posso!) Hoje não, agora não, não aqui, não me apetece escrever sobre absoluta e rigorosamente nada, contudo apetece-me escrever e não posso negar a vontade que me assalta com a violência de uma facada seca e contundente disferida directamente no abdómen, uma facada que me esventra a alma na procura incessante da fluidez que se encontra de quando em vez, bem mais do que vez em quando.
Ora, parado não podia ficar, como tal, sento-me no sofá, sozinho, luz baixa, meia-luz, ou quase luz nenhuma. Ontem montámos, num ápice amoroso, a árvore de Natal. E logo ali me deleitei e refastelei com as luzes. Com o efeito que estas, mesmo compradas num “chinês”, já mancas e intermitentes, trazem a uma sala vazia.
O Natal, para mim, são as luzes da árvore!
São as noites de pensares cheios no sofá, na sala, só com essa meia luz, luz baixa ou quase luz nenhuma. Podia nem tão pouco existir a tradição dos presentes, dos doces, da consoada, da missa de madrugada, podia não haver disto, absolutamente nada, que me contentava por certo com as luzes da árvore cobrindo e aclarando a madrugada.
É esta a ciência de escrever sobre nada?
Estou mal sentado, curvado, nem sentado nem deitado, um meio termo entre o sentado e o meio tombado, com a perna debaixo do rabo! Paciência, não há posição para escrever. Nunca mais me esqueço que o Mestre Pessoa escreveu certo dia uma quantidade ínfima de poemas… de pé! Por isso, escreverei sempre da forma que mais me aprouver, o resto, que seja para mais alguém se assim o quiser.
Perguntava eu se é ou não esta a ciência do escrever sobre nada? Não me parece tarefa nada complicada.
Entretanto… a Ana não estava sossegada. Acordou estremunhada, assolada por sonhos que a deixam assustada. Solução? Abraçá-la assim, bem abraçada e como do escrever nada se passa para um abraço à pessoa amada. Que bonito é.
Que feliz me sinto enquanto escrevo e enquanto te abraço. Que feliz me sinto de mãos arqueadas, criando sinfonias de notas desregradas assentes em cada tecla teclada, que cria este pequeno burburinho na imensidão da noite já calada e que há muito perdeu o pio. E não renego a vontade de mandar gente e mais gente para a puta que os pariu!
Nada. Boca fechada, mãozinhas bem-educadas, que a aspereza encarrega-se de te encaminhar para a porta errada. Felizmente que deixei a minha já trancada, entre a entrada afogueada e encasacada.
Sim. Bem sei que quem ler esta bandalheira vai achar que é brincadeira.
“Este pretensioso de merda a dizer que escreve sobre o nada… Já falou do natal, da noite e da namorada. Já dissertou sobre a natureza solta de uma pessoa mal sentada. Escrever sobre coisas importantes que é bom, NADA!”
São agora já pouco menos das 3 horas da madrugada.
A Ana veio aninhar-se a mim e aqui se deixou ficar encostada, pouco lhe importa que dentro de poucas, pouquinhas horas, esteja já acordada. E a mim, pouco me sabe tão bem como vê-la assim, descansada.
Podia escrever sobre isso. Sobre o amor e as cumplicidades de uma vida partilhada, mas, preferi antes dissertar sobre O Nada.
E que agradável esta sensação despreocupada de quem vê a vida entrelaçada, de quem dorme de mão apertada e de quem sonha com pouco ou… mais que nada!
Apetecia-me escrever e escrevi. Apetecer-me-á novamente amanhã. Como me apetecerá andar a pé, sorrir e beijar-te a face quando chegar novamente a casa, encasacado, calçado e ofegante. Talvez me dê para escrever sobre qualquer coisa.
Não hoje, não aqui, não agora!
Está na hora de ir embora. Já dei de beber à dor e agora, nem obrigado nem por favor.
Nada.
- 27/05/2020
Podemos aprender a dominar a língua para redigir correctamente mas escrever é muito mais do que isso. Escrever é transformar uma ideia numa imagem e uma imagem numa história…