O que dizes tu?

O Walter morreu. E com ele foi parte da bondade do mundo

Antes de falar do Walter. Deixem-me falar-vos um pouco da Flamenga.
A Flamenga é um bairro, um lugar, nem sequer ao menos é uma freguesia. Mas desengane-se quem julga que isso a demove.
A Flamenga tem pessoas do caraças e o Walter era uma das suas estrelas maiores. Deixou-nos e com ele levou, de facto, parte da bondade do mundo.

A Flamenga, para aqueles que a conhecem e que lá tiveram a sorte e felicidade de crescer é muito mais do que isso. Atrevo-me a dizer que a Flamenga é o centro do mundo. Pelo menos do nosso. Mais para uns do que para outros, na medida em que cada homem sente coisas diferentes relativamente a uma mesma coisa, neste caso, a um mesmo lugar. Contudo, da Flamenga guardamos sempre uma coisa que se sobrepõe a tudo o resto. O sentimento de comunidade, de família, de pertença. E isto, naturalmente que é também diferente para cada um de nós, os que lá crescemos. Porquê? Porque, tal como em cada uma das nossas famílias, a Flamenga é feita de pessoas, todas elas únicas na sua autenticidade, todas elas especiais na sua singularidade, mas sobretudo isto, todas elas unidas pelas memórias transversais que temos daquele sítio, daquele bairro, daquele lugar, do centro do nosso mundo.

A Flamenga é, como qualquer outro lugar, feita de pessoas e são essas pessoas – que se fizeram gente em conjunto – que determinam a natureza das ligações que as unem. Certo é que todos nós, esta geração do final dos anos 70 e dos anos 80 do século passado, fomos sendo trazidos até essa condição de gente pelos mais velhos, por todos aqueles que, não sendo da nossa família de casa, olharam para nós e por nós, sabendo que estavam ali os futuros homens daquele bairro. Que estava ali a alegria da amizade e da partilha. Tudo isto no saudoso e já distante tempo em que crescíamos e brincávamos na rua, sendo as únicas pausas permitidas e consentidas aquelas que se destinavam ao propósito único de nos matar a fome e dar energias para continuarmos a brincar. Ninguém se metia connosco. Metíamo-nos nós uns com os outros e eles, os homens, olhavam sempre para nós pelo canto do olho, ligando sem ligar muito. Davam-nos aquela sensação de estarmos sempre seguros. Sempre.

O Walter foi, sem qualquer sombra de dúvida, um dos homens mais queridos e doces que a Flamenga alguma vez conheceu. Que eu alguma vez conheci. E certo é que nunca lhe conheci, em todos estes anos, um conflito, uma animosidade, uma falha grave, uma resposta errada, um gesto feio, um maldade. Nada! Nunca lhe ouvi uma palavra amarga, um gesto rude, uma desconsideração um destratamento, gritos ou coisa parecida. E caramba, se há coisa que dele guardo é aquele sorriso enorme e rasgado, que contrastava em tudo com a imagem que dá a cor possível a este amontoado de palavras que procuram desesperadamente ter algum sentido, quando o que sinto é que é impossível dar sentido a coisas que não têm sentido nenhum.

Guardo dele imagens recentes que me enchiam de esperança num mundo melhor. O Walter tinha o lindo hábito de se comover com as crianças. Com os filhos dos amigos. Tinha sempre a candura e deliciosa atenção de oferecer sempre um presente aos pequenotes, daqueles das máquinas dos cafés. Com uma alegria e um brilho no olhar que merecem ser eternamente recordados.

A morte de pessoas como o Walter nunca faz sentido. Não pode fazer sentido. Não tem como fazer sentido. É despropositado e dele desprovido. Absurdo. Abjecto. Incompreensível. Inaceitável. Estúpido. Inatingível. Inqualificável. Irreal. Inqualificavelmente estúpido e estupidamente inqualificável. Uma merda que não se explica nem se discute. Lamenta-se.

É um dos grandes pecados da morte. A ausência de explicação possível para a mesma. É assim. Sabemos bem que um dia chegará a nossa vez, mas é e continuará a ser sempre uma merda. Dói e continuará sempre a doer. O tempo não tem força para apagar a dor da morte. Seja lá onde for que as pessoas estejam a viver.

Podemos regressar mais ou menos vezes ao local onde crescemos.
Podemos passar mais ou menos tempo com as pessoas ao lado de quem nos fizemos, também nós, pessoas. Mas se há coisa que não podemos, de forma alguma, é ignorar a dor de uma terra que nos viu crescer e chegar ao sítio onde hoje estamos, cada um de nós. Porque sim, caríssimos, a terra também chora e a Flamenga vive desolada por estes dias. Levantar-se-á, pois claro, como sempre o fez. Mas caminhará manca durante muito tempo.

Até sempre, Walter. Ficas para sempre na memória de toda a gente que teve a sorte de te conhecer.

 

Outros Artigos

. . .