Antes das coisas nasceram os dias e o seu passar vagaroso ou furioso consoante a força do vento que os empurrasse para o caminho.
O final de cada ano é sempre pejado por missionários do novo dia, que no virar do calendário se põem a andar ao contrário para avaliar tudo o que para trás ficou e o que para frente se quer ver chegar.
Esta manhã a Joana perguntava-me:
– Já escreveste o texto de final do ano?
Disse-lhe que não, que tinha lá escrevinhado uma coisa ou outra, mas ainda não sentira vontade de escrever o que quer que fosse, de ser banal, de ser comum e passar a integrar o grupo das pessoas que escrevem de uma forma que chega por vezes a parecer um pouco bacoca, as suas considerações sobre o ano que termina.
E o pior é que isto dura durante quase uma semana.
Lembro-me que na escola me incomodava terminantemente a estúpida anormalidade de passar quase todo o mês de Janeiro a escrever: Lisboa, 8 de Janeiro de 1992, risca, já estamos em 93!!
Caramba que tens sempre o caderno todo riscado e borrado. Também não tens culpa de transpirar das mãos…
Mas há em nós uma força poderosa que, ardilosamente nos tolda o juízo e não nos deixa libertar o fardo do ano que terminou.
Um ano tem 365, ou 366 dias, são muitos dias, são muitas coisas, são muitas noites, mais conversas, sorrisos, abraços, beijos, conselhos, lágrimas, sonhos, tristezas, muitas e tantas outras pitadas do que aqui falta e no entanto, não nos recordamos de metade.
(Se for ao Facebook, ou ao Instagram consigo ver o que fiz em cada mês, pfff.. lindo, nem tenho de me esforçar muito para recordar.)
Nem de metade!! Cada vez menos.
Fiz 30 anos e no dia seguinte estava nas urgências de um hospital de Lisboa.
E não foi seguramente por ter transformado o fígado em patê.
O meu ano não tem muito mais do que aquilo que me sorveu tanta energia a partir do dia 14 de Agosto. Teve o nascimento da minha afilhada, querida e adorada, que me trouxe uma alegria encantada. Teve mais aquilo que só eu sei. Tive a certeza de perceber que errei. Teve a surpresa de constatar que tropecei, me entreguei, me dei e me queimei. Teve umas férias maravilhosas contigo, minha querida, e depois, depois teve 15 dias de Agosto, 30 dias de Setembro, 31 de Outubro, mais de 30 de Novembro e agora 31 em Dezembro. Teve 82 dias em casa e um cancro. Como podia o meu ano ser mais do que isto? Como poderia não ser isto mesmo?
E depois junto-lhe as sensações e através delas permito-me a sorte fulgurante de poder recordar-me de mais coisas, mais sítios, mais passeios, mais imagens, mais livros, mais histórias, mais memórias (#Instalembranças e #tagsfornãoseioquê), medos e segredos, medos de verdade que me raptaram a alma durante um tempo, o tempo em que não consegui crer no que me/nos estava na verdade a acontecer, era difícil de mais para se conseguir compreender.
Ainda é. Ainda é muito difícil lidar com o sentimento de injustiça, de incredulidade, de lidar serenamente com os dias de raiva, com as lágrimas que escorregam a medo em direcção à barba que não cofio tantas vezes. Foi um ano que marcou. Foi um ano que me atormentou. Foi um ano em que tanta coisa mudou e mudou tanta coisa. De tanta que se ganhou ao outro tanto, o tanto que mais não é que o tanto se que se perdeu na sua quantificação.
Não quero mais. Aqui mal sentado a escrever apercebo-me de que não quero um Ano Novo, não quero um novo ano, quero que continue tudo como está, que siga a evolução natural do meu viver, que acredite novamente quando assim tiver de ser, que consiga encontrar o que busco quando me sento a ordenar pensamentos em forma de frases encavalitadas umas nas outras, sem pressa, sem atropelos, sem falar pelos cotovelos. Calei-me e tenho-me calado mais e não é um dia a menos ou um dia a mais que muda a estrada por onde vais.
– Olha para ti Martim.
– O que foi?
– Estás a ser comum, a roçar o bacoco, a escrevinhar sobre o final do ano, sabe-te, soube-te a pouco, estás a pesar em balanças completamente descalibradas o peso das palavras que te saem ao caminho e que apanhas como se de laranjas se tratassem, que enfiaste no saco e baralhaste para ver o que calhava se as despejasses para o ecrã e as fizesses alinharem-se em formações quase militares, entre adejctivos, substantivos, artigos e verbos extremamente particulares.
– E então? Sou o que digo, o que escrevo e o que faço. Sou comum como qualquer um.
Não visto os mantos da prepotência e da maledicência. Não digo nada de novo. Não tenho o ópio do povo. Não percebo os balcões dos cafés nas tardes de Inverno. Não percebo como pode ser a vida tantas vezes um Inferno. Não percebo. Mas ando no meio deles, cheiro ao que cheiramos todos, caio nos mesmos engodos e choro quando assim preciso, sem preparação, sem aviso.
– Tudo bem. Gosto de ti assim.
– Tens mesmo de gostar que não estou para me chatear.
– Então e o texto pomposo sobre o ano novo?
– Cala-te! não vês que está mesmo a acabar?
– O ano ou texto?
– És mesmo estúpido. Deixa-me trabalhar pá!
– Estás sempre a resmungar!
– Já não te posso ouvir.
E a noite que teima em não vir.
Amanhã não é o primeiro dia do resto de coisa nenhuma, sem qualquer desprimor pela tua obra prima, Jorge. Amanhã não é nem um dia a mais nem um dia a menos, é sim, um dia como todos os outros. Minto, é um dia pior. Está tudo trêbado em casa, de pança cheia, fígado amassado, sabor a papel na boca, os contentores entornados com lixo que não acaba, e começa logo bem o ano que aí vem.
E porque não quero ser só um pseudo bacoco, tenho de terminar isto com os desejos de bom ano inerentes a esta data. Então aqui vai:
Bom Ano.
E…
É isto. Para o ano haverá mais e menos e dias maiores e noites mais pequenas, dias mais frios e noites mais amenas. Mas sobretudo que possamos continuar a acordar e a sentir o bafejo misericordioso de um novo bom dia. A sorte incrível que temos por acordar novamente.
O pai da minha amiga partiu em paz. “Dormia em conchinha”. Muita força Ritinha. Deve doer como poucas coisas doem, mas… A vida é tudo isto e nada disto ao mesmo tempo.
A vida é sobretudo tempo. Tempo que não para. Tempo que não estica. Tempo que voa. E a vida é tão boa e tão dura ao mesmo tempo, sempre o tempo, mesmo quando não é tempo dele falar.
A vida é bela. Estou conformado. Vivê-la é por certo o melhor e o mais acertado. O grande medo que tenho é o de um dia sair da vida e perceber que lhe passei ao lado. Não terá sido vida mas sim uma montanha formada por tempo desperdiçado.